Venus

Recorte da obra Venus e Marte, de Sandro Botticelli, por volta de 1485

Memorial de leitura

A primeira palavra que me ocorre ao falar de leitura é prazer. Melhor dizendo, é a primeira sensação que me invade ao me imaginar sentada em um canto tranquilo com um bom livro nas mãos...

Minha relação com a leitura teve um começo feliz, pois desde o início foi uma relação livre, voluntária, espontânea. Cresci em um grande sobrado, onde no andar térreo, à direita de quem entrasse, havia um cômodo encantado, sempre à meia-luz, onde o sol entrava discretamente durante algumas horas da manhã, o que o tornava fresco e aconchegante durante as tardes. Esse cômodo era a biblioteca de meus pais, que eu e meus irmãos chamávamos de ‘escritório’. Quatro paredes forradas de estantes cheias de livros, do chão ao teto. Apenas o vão da janela e o da porta não tinham livros. No centro, a escrivaninha de madeira, coberta de papéis, e sobre ela uma máquina de datilografar. Sob a janela, duas poltronas frente a frente para favorecer o diálogo mudo que só os livros proporcionam. Meus pais, dois grandes leitores apaixonados por livros e pela leitura, de quem tive a sorte de herdar esta veia.

Lembro-me de chegar da escola, almoçar, liberar-me das tarefas e descer para ficar na biblioteca, que à tarde era só minha, pois meus pais saíam para trabalhar e meus irmãos tinham outros interesses. Eu dispunha de pelo menos umas três horas para ler, horas de pura magia, deleite e contentamento, durante as quais eu me sentava na poltrona de meu pai, a mais confortável, e devorava o livro do momento...Meu quarto ficava no primeiro andar, era um quarto agradável, onde também havia uma estante cheia de livros, mas não se comparava ao escritório como local de leitura. Eu aproveitava a ausência de meus pais para desfrutar desse espaço mágico. Por isso, descia as escadas...

Fecho os olhos e sinto um leve cheiro de poeira, poeira de livros, a mais nobre das poeiras que conheci até hoje, e que nunca me incomodou! Um cheiro de grama molhada, e ao final da tarde, aquele aroma inconfundível de café, avisando que meus pais estavam prestes a retornar. Como as horas passavam rápidas!

Mas o que tornava tão especial esse cômodo eram os livros. A presença física e numerosa dos livros. Suas diferentes lombadas, suas cores, seus títulos, seus autores, até seus defeitos eu achava lindos. Muitas vezes desviava os olhos do livro que lia e passava muito tempo contemplando as estantes,  imaginando o mundo adormecido naquelas milhares de páginas,  à espera somente de alguma mão humana que os pegasse e os acordasse. Silenciosos companheiros,  muitos tornavam-se preciosos amigos após a leitura. Durante minha infância e adolescência os livros foram meus melhores amigos. Mesmo aqueles que eu esqueci, que não deixaram traços em minha memória ou imaginação. Em algum desvão de minha alma eu sinto sua presença...

A leveza e a frescura da minha relação com os livros nasceu da falta de obrigação e de proibições. Por meio de alguma força indefinível eles me atraíam, eu os pegava, começava a ler, e se eles me seduzissem eu prosseguia, enquanto e até aonde eu sentisse prazer...Certamente meus pais tentavam direcionar minhas leituras, mas eles o fizeram de forma tão suave que eu nem percebia. Eu me sentia livre para abrir qualquer um dos livros naquelas estantes e tentar navegá-los. Naufraguei várias vezes, mas sempre recomeçava, lançava-me àquele mar de histórias, de personagens, de mundos, de vidas à minha espera, um mar profundamente humano e verdadeiro, muito mais real para mim do que a própria vida que levava!

Hoje penso que isso acontecia porque essa relação com os livros era de igual para igual. Existíamos enquanto par, enquanto troca. Eu os despertava, eles me acrescentavam. Alguns personagens me acompanham vida afora, como duplos, como amigos, como conselheiros. Às vezes sinto tanta saudade de alguns que preciso folhear e ver seus nomes impressos no papel para ter certeza de que ainda se lembram de mim!

E assim fui crescendo, saí de casa, fui morar em outras cidades, mas aquele cômodo nunca saiu de dentro de mim. Sempre tive necessidade de ter livros a minha volta, principalmente à minha cabeceira. A presença física dos livros me conforta, me acalma. Como se eles fossem minha garantia contra a solidão, pois guardam o dom de despertar minha essência, meu ser.

Até hoje tenho uma resistência enorme em ler um livro por obrigação. Penso que as bibliotecas deveriam ser lugares agradáveis, acolhedores e aconchegantes, onde os livros estivessem à espera dos leitores. As crianças deveriam ser livres para escolher, para se deixarem seduzir pelos livros, para deixar que eles despertem seu mundo interior, sem imposições, sem medos, sem cobranças.

Como deveriam ser todas as relações humanas...


[Nádia Monteiro]
Foto de João Monteiro Neto

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