Venus

Recorte da obra Venus e Marte, de Sandro Botticelli, por volta de 1485

Estranha assimetria



 Não há qualquer razão para crer que somos melhores que as plantas, diz Affonso Romano de Sant´Anna num dos poemas reunidos no livro A vida é um escândalo. Depuradíssimo, publicado quando o poeta chega aos 80 anos de uma vida que parece não caber em período tão curto, o livro é uma sucessão de descobertas, impressões e reflexões que dão peso e grandeza ao pequeno volume, de menos de 100 páginas. 

Affonso Romano começa o livro questionando a importância da própria poesia: “O que te leva a pensar / que teu livro é necessário / às bibliotecas do mundo?” Em seguida, compara as palavras do poema às pedras do Deserto do Atacama, com sua “concretude desnecessária e solitária”. A imensidão inóspita, e bela, do deserto parece ter sensibilizado o poeta, que retorna a ele mais à frente, ao tratar da passagem do tempo. As pedras do Atacama, lembra o poeta, são imunes ao tempo e à angústia causada por seu eterno fluir. 

Para o poeta, a poesia é instrumento questionador. “Às vezes o poema cai como um raio / em cima de você”, mas se não for assim, só se pode, quando muito, “ouvir os ruídos / do que se perdeu”. Para o leitor, um livro como A vida é um escândalo é um exercício de reflexão e prazer que oferece momentos especiais, quando se dá ao luxo de perceber que viver não é apenas deixar que um minuto, uma hora ou um dia se sobreponham aos minutos, horas e dias anteriores, mas estancar naquele tempo com a ilusão de pará-lo, olhar em volta e descobrir que talvez a vida seja uma enfermidade ou uma anomalia da natureza, e desconfiar que aquele crânio de 4,5 milhões de anos achado na Etiópia pode estar nos observando até hoje. 

É assim que Affonso Romano de Sant´Anna brinca (seriamente) com o tempo. Os mortos, que já superaram essa barreira, “atingiram / o que os vivos almejam / - a neutralidade absoluta”, diz o poema Os mortos não têm que escovar os dentes. Irônico e erudito, sabe que a poesia é a voz que vem do fundo do coração e representa a liberdade da fala sem qualquer comprometimento. “Cada poeta, no seu tempo / sussurra um segredo / e esse segredo / atravessa o mundo / como tempestade / - e confissão”. 

A influência do acaso em nossas vidas, a força do inexorável, as contradições entre a ação do homem e o eterno fluir das forças naturais são alguns dos temas caros à poesia de Affonso Romano, de forma a nos colocar diante de um espelho que, como diz um dos poemas, exibe estranha assimetria. “Um olha o outro / e o outro / vê no um / o dessemelhante”. Dessa forma, a poesia de Affonso nos apresenta a nossos próprios olhares como esse ser estranho, dessemelhante, que deve ser despertado para conhecer a si mesmo. 

Mas a poesia também quer cumplicidade, afirma o poeta. Com lucidez e sabedoria, dialoga com o mundo - e dele extrai a essência. Em cada verso, às vezes se referindo a coisas aparentemente banais, outras vezes propondo reflexões inesperadas, Affonso Romano de Sant´Anna faz da poesia a linguagem da liberdade. Expõe com sensibilidade as feridas do mundo, que exigem o olhar da poesia para chegar a nossos sentidos. E joga luz sobre a vida, tornando-a mais palatável, mais decifrável e mais bela. 

[Alexandre Marino] 

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