Venus

Recorte da obra Venus e Marte, de Sandro Botticelli, por volta de 1485

Três Travessias



Não será fácil “ler” a primeira travessia, a tal ponto a melodia já está entranhada em nossos sentidos. Mas vale a tentativa, o esforço de simplesmente ler, tentando não deixar a música interferir. Como disse Antonio Cícero, “Os poemas líricos da Grécia antiga e dos provençais eram letras de músicas. Perderam-se as músicas que os acompanhavam, de modo que só os conhecemos na forma escrita... alguns são enumerados entre os maiores que já foram escritos[1]. Sobreviveram porque eram, de fato, Poesia... é interessante a experiência de ler a “letra” da canção Travessia, de Fernando Brant (música de Milton Nascimento).

 Essas três travessias se encontraram em minha vida recentemente. Pela primeira vez fui ver um show do Milton, claro que ele cantou Travessia; tinha acabado de ler o excelente livro inédito do poeta Alberto Bresciani Fundamentos de ventilação e apneia, quando passei por outra travessia, e, levada por esta, fui reler a travessia do Exília, livro de Alexandre Marino... 

A voz do Milton é sublime; ouvi-lo ao vivo, uma vivência. Mesmo assim, vale a experiência de tentar simplesmente ler o poema Travessia e escutar uma outra voz... 

Travessia, caminho longo e ermo, metáfora perfeita da vida. Três travessias – três poetas, três posturas no antes e no depois. Na primeira, o eu lírico nos fala, se confessa, desabafa. Na segunda, onisciente, o destino; na terceira, o eu se observa, compreende. Três vaticínios... 

Boa leitura!

Travessia (1) 

Quando você foi embora
Fez-se noite em meu viver
Forte eu sou mas não tem jeito
Hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha
E nem é meu este lugar
Estou só e não resisto
Muito tenho pra falar

Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar
Sonho feito de brisa
Vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar

Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito que viver
Vou querer amar de novo
E se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver

Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar
Sonho feito de brisa
Vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar

Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito que viver
Vou querer amar de novo
E se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver

Fernando Brant 

Travessia (2)

Na travessia do rio
alguma zebra e algum
impala perdem a vida

Todos pressentem, são
visíveis as manobras
dos crocodilos

Ainda assim, não há
como evitar os passos,
o ímã do destino

E os animais atiram-se
à correnteza, precisam
saber o outro lado

Alberto Bresciani, Fundamentos de ventilação e apneia, inédito

Travessia (3) 

Você se faz pássaro
e atravessa o abismo
que o separa da glória
(sete esperas
na bagagem
e uma vergonha
na história)

Sem distinguir
entre rajadas de chuva
e raios de luar

os monstros que habitaram
sua infância
e a paranoia
que na velhice
recebeu de herança.

Alexandre Marino, Exília, 2013

________________
[1] Sobre as letras de canções, in A poesia e a crítica. Companhia das Letras, 2017, p.88. 



[Nádia Monteiro] 

Estranha assimetria



 Não há qualquer razão para crer que somos melhores que as plantas, diz Affonso Romano de Sant´Anna num dos poemas reunidos no livro A vida é um escândalo. Depuradíssimo, publicado quando o poeta chega aos 80 anos de uma vida que parece não caber em período tão curto, o livro é uma sucessão de descobertas, impressões e reflexões que dão peso e grandeza ao pequeno volume, de menos de 100 páginas. 

Affonso Romano começa o livro questionando a importância da própria poesia: “O que te leva a pensar / que teu livro é necessário / às bibliotecas do mundo?” Em seguida, compara as palavras do poema às pedras do Deserto do Atacama, com sua “concretude desnecessária e solitária”. A imensidão inóspita, e bela, do deserto parece ter sensibilizado o poeta, que retorna a ele mais à frente, ao tratar da passagem do tempo. As pedras do Atacama, lembra o poeta, são imunes ao tempo e à angústia causada por seu eterno fluir. 

Para o poeta, a poesia é instrumento questionador. “Às vezes o poema cai como um raio / em cima de você”, mas se não for assim, só se pode, quando muito, “ouvir os ruídos / do que se perdeu”. Para o leitor, um livro como A vida é um escândalo é um exercício de reflexão e prazer que oferece momentos especiais, quando se dá ao luxo de perceber que viver não é apenas deixar que um minuto, uma hora ou um dia se sobreponham aos minutos, horas e dias anteriores, mas estancar naquele tempo com a ilusão de pará-lo, olhar em volta e descobrir que talvez a vida seja uma enfermidade ou uma anomalia da natureza, e desconfiar que aquele crânio de 4,5 milhões de anos achado na Etiópia pode estar nos observando até hoje. 

É assim que Affonso Romano de Sant´Anna brinca (seriamente) com o tempo. Os mortos, que já superaram essa barreira, “atingiram / o que os vivos almejam / - a neutralidade absoluta”, diz o poema Os mortos não têm que escovar os dentes. Irônico e erudito, sabe que a poesia é a voz que vem do fundo do coração e representa a liberdade da fala sem qualquer comprometimento. “Cada poeta, no seu tempo / sussurra um segredo / e esse segredo / atravessa o mundo / como tempestade / - e confissão”. 

A influência do acaso em nossas vidas, a força do inexorável, as contradições entre a ação do homem e o eterno fluir das forças naturais são alguns dos temas caros à poesia de Affonso Romano, de forma a nos colocar diante de um espelho que, como diz um dos poemas, exibe estranha assimetria. “Um olha o outro / e o outro / vê no um / o dessemelhante”. Dessa forma, a poesia de Affonso nos apresenta a nossos próprios olhares como esse ser estranho, dessemelhante, que deve ser despertado para conhecer a si mesmo. 

Mas a poesia também quer cumplicidade, afirma o poeta. Com lucidez e sabedoria, dialoga com o mundo - e dele extrai a essência. Em cada verso, às vezes se referindo a coisas aparentemente banais, outras vezes propondo reflexões inesperadas, Affonso Romano de Sant´Anna faz da poesia a linguagem da liberdade. Expõe com sensibilidade as feridas do mundo, que exigem o olhar da poesia para chegar a nossos sentidos. E joga luz sobre a vida, tornando-a mais palatável, mais decifrável e mais bela. 

[Alexandre Marino]