Não será fácil “ler” a primeira travessia, a tal ponto a
melodia já está entranhada em nossos sentidos. Mas vale a tentativa, o esforço
de simplesmente ler, tentando não deixar a música interferir. Como disse
Antonio Cícero, “Os poemas líricos da
Grécia antiga e dos provençais eram letras de músicas. Perderam-se as músicas
que os acompanhavam, de modo que só os conhecemos na forma escrita... alguns
são enumerados entre os maiores que já foram escritos”[1].
Sobreviveram porque eram, de fato, Poesia... é interessante a experiência de
ler a “letra” da canção Travessia, de
Fernando Brant (música de Milton Nascimento).
Essas três travessias se encontraram em minha vida
recentemente. Pela primeira vez fui ver um show do Milton, claro que ele cantou
Travessia; tinha acabado de ler o
excelente livro inédito do poeta Alberto Bresciani Fundamentos de ventilação e apneia, quando passei por outra travessia,
e, levada por esta, fui reler a travessia do Exília, livro de Alexandre Marino...
A voz do Milton é sublime; ouvi-lo ao vivo, uma vivência. Mesmo
assim, vale a experiência de tentar simplesmente ler o poema Travessia e escutar uma outra voz...
Travessia, caminho longo e ermo, metáfora perfeita da vida. Três
travessias – três poetas, três posturas no antes e no depois. Na primeira, o eu
lírico nos fala, se confessa, desabafa. Na segunda, onisciente, o destino; na
terceira, o eu se observa, compreende. Três vaticínios...
Boa leitura!
Travessia (1)
Quando você foi embora
Fez-se noite em meu viver
Forte eu sou mas não tem jeito
Hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha
E nem é meu este lugar
Estou só e não resisto
Muito tenho pra falar
Fez-se noite em meu viver
Forte eu sou mas não tem jeito
Hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha
E nem é meu este lugar
Estou só e não resisto
Muito tenho pra falar
Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar
Sonho feito de brisa
Vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar
Sonho feito de brisa
Vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar
Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito que viver
Vou querer amar de novo
E se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito que viver
Vou querer amar de novo
E se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver
Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar
Sonho feito de brisa
Vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar
Sonho feito de brisa
Vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar
Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito que viver
Vou querer amar de novo
E se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito que viver
Vou querer amar de novo
E se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver
Fernando Brant
Travessia (2)
Na travessia do rio
alguma zebra e algum
impala perdem a vida
alguma zebra e algum
impala perdem a vida
Todos pressentem, são
visíveis as manobras
dos crocodilos
visíveis as manobras
dos crocodilos
Ainda assim, não há
como evitar os passos,
o ímã do destino
como evitar os passos,
o ímã do destino
E os animais atiram-se
à correnteza, precisam
saber o outro lado
à correnteza, precisam
saber o outro lado
Alberto Bresciani, Fundamentos de
ventilação e apneia, inédito
Travessia (3)
Você se faz pássaro
e atravessa o abismo
que o separa da glória
(sete esperas
na bagagem
e uma vergonha
na história)
e atravessa o abismo
que o separa da glória
(sete esperas
na bagagem
e uma vergonha
na história)
Sem distinguir
entre rajadas de chuva
e raios de luar
entre rajadas de chuva
e raios de luar
os monstros que habitaram
sua infância
e a paranoia
que na velhice
recebeu de herança.
sua infância
e a paranoia
que na velhice
recebeu de herança.
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[1] Sobre as letras de canções, in A poesia e a crítica. Companhia das Letras, 2017, p.88.
[Nádia Monteiro]